Novela

Santa e Rainha

coroaeveu

Capítulo 1      

       Maria Isabel não tinha livros, apenas aquela bíblia preta de seu pai que ninguém ousava abrir. A banca de jornal era o objeto mais cobiçado. Os gibis eram baratos e, mesmo antes de aprender a ler, já se encantava com as imagens. Sentada no banco do bonde,  cruzava suas perninhas de garça e nem observava o trajeto cheirando à maresia; a viagem era outra. Ouvia histórias, antes de dormir, contadas pela sua mãe, cansada da máquina de costura. Eram histórias da meninice de Dona Custódia, do tempo em que morava numa cidadezinha à beira do grande rio, ou mesmo contos de fadas. Chega, menina, vamos dormir. E Bel antevia os banhos, as ilhas, a cantoria das lavadeiras, as procissões, as festas, o mergulho dos meninos, o ir e vir das canoas. Dormia e sonhava com o dia em que seria a rainha, porque princesa já era nas brincadeiras da escadaria do castelo do outro lado da rua. 

      O pai, sempre em silêncio, consumia-se na fumaça do cigarro, mas jogava conversa fora com os vizinhos nos finais de semana. Levou muito bolo nas mãos quando espalhou pela escola que Seu Zeca estava preso ao estourar a revolução. Não era mais o local de trabalho do papai.  Ele não fez nada, dizia. Acompanhou a mãe naquela sala enorme para falar com o todo poderoso. Na semana seguinte estava solto.  Passara um mês lá, o  suficiente para dobrar a quantidade de calmantes, imitar o zunzum  das moscas,  contar dos artistas em celas vizinhas. Não voltou mais.  Sentia-se perseguido e refugiou-se nos sonhos de terras, cavalos, vacas.   Sumia e algumas vezes voltava feliz, em outras, derrotado. A areia espalhara-se  e o lucro fora levado pela chuva. Na manhã em que se foi, escutaram o barulho de seus tamancos  a caminho do armazém. Lia pela segunda vez um livro emprestado, Teresa Batista Cansada de Guerra. Despedia-se esgotado da batalha pessoal.

 

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